UMA VISITA AO INFERNO

“Dom Bosco é o santo que sorri sempre, e sorri a todos. O santo da compreensão” — afirma o Pe. Rodolfo Fierro, S.D.B., na Introdução Geral da obra “Biografia e Escritos de São João Bosco”. O afável Dom Bosco julgou proveitoso, para a formação de seus juvenis alunos, a narração do sonho que transcreveremos a seguir 1.
No domingo, 3 maio de 1869, festa do Patrocínio de São José, Dom Bosco recomeçou a narração de seus últimos sonhos. Eis como relatou sua “visita ao Inferno”:
— Devo contar-lhes outro, que pode ser tomado como conseqüência dos narrados às quintas e sextas-feiras à noite, os quais me deixaram tão cansado, que dificilmente podia manter-me de pé. Vós os chamareis de sonhos ou lhes dareis outro nome... como quiserdes.
Já vos falei de um sapo disforme que na noite de 17 de abril ameaçava engolir-me, e como, ao desaparecer ele, ouvi uma voz que me disse:
— Por que não falas?
Voltei-me para o lugar de onde vinha essa voz e vi junto ao meu leito um distinto personagem. E lhe perguntei:
— E que deverei dizer a nossos rapazes?
— O que tens visto e ouvido nos últimos sonhos. Além disto, o que desejavas saber e que te será revelado na próxima noite.
E desapareceu.
No dia seguinte estive pensando na má noite que haveria de passar. E, chegada a hora, não me decidia a deitar-me. Fiquei lendo, sentado à mesa, até meia-noite. Horrorizavame a idéia de ter que presenciar novamente espetáculos terríveis. Afinal, fiz-me uma grande violência e deitei-me.
Para não adormecer de imediato, por temor de que a imaginação me levasse aos costumeiros sonhos, apoiei o travesseiro nos ferros da cama, de modo a permanecer sentado. Porém, estando muito cansado, apoderou-se de mim o sono sem eu me dar conta. Vi subitamente no quarto, junto à minha cama, o homem da noite anterior, que me disse:
— Levanta-te e vem comigo!
— Rogo-te, por favor — respondi — deixa-me tranquilo, pois estou muito cansado. Olha, há vários dias que a dor de dentes não me deixa em paz! Deixa-me descansar. Tenho tido sonhos espantosos. Estou extenuado.
Dizia isto também porque a aparição deste homem é sempre sinal de grande agitação, de cansaço e de terror.
— Levanta-te! Não há tempo a perder! — respondeu-me.
Levantei-me e o segui. No caminho, lhe perguntei:
— Aonde queres levar-me?
— Vem e verás.
Era uma estrada formosa, larga, espaçosa e bem pavimentada
Conduziu-me ele a um lugar onde se estendia uma imensa planície. Olhei em redor, sem ver em parte alguma os confins dela. Era um verdadeiro deserto! Não havia pessoa alguma por aquelas bandas. Não se via nem uma planta nem um rio. A erva seca e amarelada apresentava um espetáculo desolador. Não sabia onde me encontrava nem o que ia fazer. Durante alguns instantes, perdi de vistas o guia. Temi haver-me perdido. Não estava comigo nem Dom Rua, nem Dom Francesia, nem nenhum outro. Descobri de novo o amigo, que vinha a meu encontro. Respirei aliviado e lhe perguntei:
— Onde estou?
— Vem comigo e verás.
Ele caminhava na frente e eu o seguia em silêncio. Após um longo e triste percurso, Dom Bosco, pensando que devia atravessar aquela imensa planície, dizia consigo mesmo:
— Pobre de meus dentes! Pobre de mim, com as pernas inchadas!...
De repente, sem saber como, chegamos a uma estrada. Rompi então o silêncio, perguntando a meu guia:
— Aonde vamos agora?
— Vem por aqui — respondeu-me.
E nos encaminhamos por aquela estrada. Era formosa, larga, espaçosa e bem pavimentada: “O caminho dos pecadores é muito bem pavimentado, mas, no fim dele estão o Inferno, as trevas e as penas” (Ecli 21, 11).
Nos lados do caminho, sobre as encostas, havia dois formosíssimos vales verdes, cobertos de flores encantadoras. As rosas, especialmente, surgiam por todas as partes dentre as folhas. À primeira vista, este caminho parecia plano e cômodo, e, sem suspeitar de nada, pus-me a caminhar por ele. Porém, à medida que avançava, notei que ia descendo insensivelmente, e, embora a descida não parecesse muito rápida, eu corria com tal velocidade que parecia estar sendo levado pelo vento. Mais ainda: tão rápida era nossa carreira que dei-me conta de estar avançando sem mover os pés. Considerando que voltar atrás por um caminho tão longo me custaria grande trabalho e fadiga, disse a meu amigo:
— E como nos arranjaremos para voltar ao Oratório?
— Não te preocupes. O Senhor é onipotente e quer que vás. Este que te guia e te ensina ir adiante, saberá também conduzir-te de volta — respondeu-me.
Um caminho com muitas armadilhas
O caminho descia sempre. Seguíamos nossa viagem entre flores e rosas, quando vi todos os meninos do Oratório, com muitíssimos outros companheiros que jamais havia visto, caminhando atrás de mim. Enquanto eu os observava, encontreime entre eles e vi que ora caía um, ora caía outro, sendo em seguida arrastados por uma força invisível rumo a um horrível precipício que se divisava ao longe, e depois eram lançados de ponta-cabeça num forno. Perguntei a meu companheiro:
— O que faz caírem esses jovens?
— “Estenderam cordas em forma de armadilha; junto ao caminho lhe armaram ciladas” (Ps 139). Aproxima-te um pouco mais — respondeu-me.
Aproximei-me e vi que os meninos passavam entre muitas armadilhas, algumas colocadas rentes ao chão, outras à altura da cabeça. Estas últimas não eram percebidas. Por conseguinte, muitos jovens, enquanto caminhavam sem dar-se conta do perigo, eram colhidos pelas armadilhas. No momento em que eram apanhados, davam um salto, depois caíam por terra com as pernas para cima, e, levantando-se, empreendiam irrefreável carreira em direção do abismo. Eram presos pela cabeça, pelas mãos, pela cintura, por um braço, por uma perna, pelo pescoço, e arrastados imediatamente. As armadilhas estendidas na terra, quase imperceptíveis, pareciam ser de estopa. Eram semelhantes a fios de aranha e parecia que não podiam fazer muito mal. Sem embargo, vi que também os jovens colhidos por essas armadilhas caíam todos por terra.
Respeito humano atrás do qual está um feio e asqueroso monstro
Eu estava espantado. E o guia me disse:
— Sabes o que é isto?
— É somente um pouco de estopa — respondi.
— Menos ainda: isto não é nada. Não é mais que o respeito humano.
Vendo, entretanto, que muitos continuavam enredando-se nessas armadilhas, perguntei:
— Porém, como é que tantos se deixam amarrar por estes fios? Quem os arrasta deste modo?
— Aproxima-te mais, olha e verás.
— Eu nada vejo — lhe disse depois de haver olhado durante um minuto.
— Olha um pouco melhor — respondeu.
Tomei uma daquelas armadilhas, puxei-a até perto de mim, e descobri que sua ponta extrema não aparecia. Puxei um pouco mais, mas não pude ver aonde ia terminar aquele fio, e percebi que também a mim ele arrastava. Segui então a direção daquele fio e chequei à boca de uma espantosa caverna. Detive-me, porque não queria entrar. Puxei de novo aquele e fio e me dei conta de que em algo ele cedia. Porém, era necessário fazer mais força. E eis que, depois de muito puxar, pouco a pouco veio saindo para fora um monstro feio, grande e asqueroso, o qual mantinha fortemente seguras as pontas de todas aquelas armadilhas. Era este que puxava imediatamente para si todo aquele que caía naquela rede.
— É inútil — disse para mim mesmo — enfrentar a força deste monstro feio, porque não o vencerei; é melhor combatê-lo com o sinal-dacruz e com jaculatórias.
Voltei atrás, para junto de meu guia, e ele me disse:
— Sabes agora quem é?
— Oh, sim! Já sei, é o demônio que estende essas armadilhas para fazer meus jovens caírem no Inferno.
Observei com atenção muitas dessas armadilhas e vi que cada uma levava escrito seu próprio título: “Soberba, desobediência, preguiça, sexto mandamento, roubo, gula, inveja, ira”, etc.
Isto feito, afastei-me um pouco para observar qual daquelas armadilhas pegava maior número de jovens. Eram as da desonestidade, desobediência, roubo e soberba. As três primeiras estavam amarradas a esta última. Vi muitas outras armadilhas que causavam grande estrago, mas não tanto como estas. Continuando a observar, vi muitos rapazes que corriam mais desabaladamente que os outros, e perguntei:
— Por que esta velocidade?
— Porque eles são arrastados pelos laços do respeito humano.
Olhando com mais atenção ainda, vi que entre essas armadilhas havia, espalhadas de um e outro lado, muitas facas que serviam para cortá-las, ali postas por uma mão providencial. A maior delas representava a meditação, e era a arma contra a armadilha da soberba. Outra muito grande também, mas um pouco menor do que a primeira, significava a leitura espiritual bem feita.
Além disto, havia duas espadas. Uma delas era a devoção ao Santíssimo Sacramento; a outra, a devoção à Virgem Maria. Havia também um martelo: a confissão. Havia outras facas, símbolo de várias devoções: a São José, a São Luiz de Gonzaga, etc.
Com essas armas, muitos rapazes arrebentavam suas armadilhas, quando eram agarrados, ou se defendiam para nelas não caírem.
Com efeito, vi diversos jovens que andavam por entre elas de tal maneira que nunca eram apanhados. Ou passavam antes que caísse a armadilha, ou sabiam desviar-se dela quando caía, de modo a não serem aprisionados.
Quando o guia deu-se conta de que eu já havia observado tudo, fez-me continuar pelo caminho margeado de rosas, as quais iam ficando menos numerosas à medida que avançávamos, começavam a aparecer compridos espinhos.
Chegamos a uma altura em que, por mais que eu olhasse, não encontrava mais uma rosa sequer. O roseiral estava todo transformado em espinheiro sem folhas e queimado pelo sol. Além da galharia retorcida e seca, saíam cipós que serpenteavam pelo chão, enchendo-o tanto de espinhos que só com grande dificuldade se podia andar.
Tínhamos chegado a uma depressão do terreno, de onde não podíamos ver as regiões vizinhas. O caminho continuava sempre em declive, cada vez mais horrível, já sem pavimentação, cheio de buracos e pedras. Perdi de vista todos os meus rapazes, muitíssimos dos quais haviam saído daquele caminho insidioso e tomado outro rumo.
Um caminho cada vez mais espantoso
Continuei caminhando. Quanto mais avançava, mais áspera e acentuada era a descida, de maneira tal que às vezes eu escorregava e caía por terra, onde permanecia até recobrar as forças... De vez em quando, o guia me amparava e ajudava a levantar-me. Parecia-me que a cada novo passo iam desconjuntar-se meus ossos. Com voz entrecortada de cansaço, disse a meu guia:
— Veja, meu amigo, minhas pernas não podem mais me sustentar. Estou tão alquebrado que é-me impossível continuar a viagem.
O guia não me respondeu. Deume por acenos um pouco de ânimo e prosseguiu seu caminho. Vendo-me cheio de suor e morto de cansaço, conduziu-me a um outeiro que havia ao lado da estrada. Sentei-me, respirei profundamente e parece que descansei um pouco. Entretanto, olhava para trás e via o caminho já percorrido: parecia cortado a pique e cheio de espinhos e afiadas pedras... Olhava depois o caminho que ainda tinha a percorrer, e fechava os olhos, espantado. Por fim, exclamei:
— Por favor, voltemos atrás! Se seguirmos adiante, como faremos para retornar ao Oratório? Para mim, será impossível subir essa rampa.
O guia respondeu-me resolutamente:
— Agora que chegamos a este ponto, queres ficar sozinho?
— Sem ti, como poderei voltar atrás ou prosseguir adiante? — exclamei em tom dolorido, ante essa ameaça.
— Pois bem, segue-me — acrescentou ele.
Levantei-me e continuamos descendo. O caminho se tornava cada vez mais espantoso e intransitável, de modo que mal conseguia manterme de pé.
Eis que no fundo desse precipício, que terminava num vale escuro, surgiu um imenso edifício que ostentava diante de nosso caminho uma porta altíssima e fechada. Chegamos ao fundo do precipício.
O lugar “onde não há redenção”
Ao redor daquelas muralhas sulcadas por chamas sanguinolentas sentia-se um calor sufocante e elevavase uma espessa fumaça esverdeada. Levantei os olhos para ver a altura daquelas paredes. Eram mais altas que uma montanha. Perguntei ao guia:
— Onde estamos. O que é isto?
— Lê o que está escrito naquela porta. Pela inscrição, saberás onde estamos.
Olhei e vi escrito na porta: “Aqui não há redenção”. Dei-me conta, então, de que estávamos na porta do Inferno.
O guia levou-me a dar uma volta pelas muralhas daquela horrível cidade. A intervalos regulares, via-se uma porta de bronze como a primeira, aos pés de uma lúgubre rampa, cada qual com uma inscrição diferente das anteriores.
Apartai-vos de Mim, malditos, para o fogo eterno, que está preparado para o demônio e seus anjos decaídos... Toda árvore que não dá bom fruto será cortada e lançada ao fogo.
Peguei o lápis para copiar aquelas inscrições. O guia me disse:
— Que fazes?
— Tomo nota dessas inscrições.
— Não é preciso. Todas estão nas Sagradas Escrituras. Mais ainda, tu mandaste colocar algumas delas nos portais de teu Oratório.
(Continua no próximo post.)
 1) Obras completas de San Juan Bosco, Editora B.A.C., Madrid, 1967. Os subtítulos são de nossa Redação.

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