O clérigo Teófilo
Clara Penin
Houve certa vez um clérigo
chamado Teófilo, muito conhecido na região em que vivia. Ele não fazia outra
coisa senão ajudar os necessitados e todos os que a ele recorriam, praticando
assim uma das mais belas virtudes, a caridade.
Sua fama crescia a cada dia;
todos na cidade o tinham como grande santo. O bispo daquela região fez dele o
seu vidama, ou seja, passou a ter a função de administrar os bens da diocese.
Muitos chegaram a enriquecer-se nesse cargo. Teófilo, ao contrário, só
procurava ajudar os outros com os seus próprios recursos.
Tendo falecido esse bispo, todo
o clero e até os simples fiéis aclamavam Teófilo como sucessor. Este, porém,
dizendo-se indigno do cargo, não o aceitou, sendo nomeado outro.
Não sendo homem de vida
interior e vendo-se em tão honrosa situação, o novo prelado tomou-se de vaidade
e prepotência. Todos sabiam que ele se tornara bispo porque Teófilo tinha
recusado a dignidade. Esse era um dos motivos pelos quais ele sentia incômodo
em ter Teófilo a seu lado. Então procurou um pretexto e o destituiu do cargo de
vidama.
O pobre clérigo, que sempre
quis ser o último em tudo, não precisava mais esforçar-se nesse sentido, pois
se viu abandonado de todos. Revoltou-se então e, a cada instante, crescia seu
desejo de vingança. Durante a provação, descobriu que não era aquele homem
virtuoso que, aos seus próprios olhos, parecia ser. Arrependeu-se assim por ter
recusado o episcopado.
Ninguém mais lhe manifestava
gratidão, e isso o deixava envergonhado. Tornou-se amargurado, cheio de rancor,
com o coração transbordante de ódio.
Nos tempos em que fora vidama,
tinha ouvido reclamações sobre um feiticeiro que vivia no fundo da floresta.
Diziam que era uma criatura ligada ao anjo das trevas. Teófilo não tinha a
certeza de sua existência; tudo o que ouvira poderia ser lenda, porém pôsse a
procurá-lo. Tendo-o encontrado, Teófilo não precisou dar longas explicações do
que realmente queria, pois aquele misterioso homem já tinha a solução para o
seu caso sem mesmo conhecê-lo.
O antigo vidama queria poder e
riqueza e isso não era difícil para aquela criatura diabólica. Bastaria o
clérigo vender sua alma ao demônio que tudo seria concedido: carreira, sucesso,
fama e poder. Com seu próprio sangue, Teófilo assinou então um documento no
qual constava que sua alma pertencia ao demônio, o qual se fez presente naquele
momento com a sua horrenda aparência.
No dia seguinte, o bispo mandou
chamá-lo, reconhecendo seu erro e devolvendo-lhe o cargo de vidama. Toda a
cidade se alegrou com a notícia, e todos acorreram para felicitá-lo.
Teve de novo fama e poder, e
isso o inebriava. Para ele não importava ser bispo ou não, pois até o prelado
ele tinha em suas mãos. Mandava em todos e decidia o destino de muitos. Era
tido por santo, pois era o que aparentava ser.
Passaram-se os anos e Teófilo
lembrava-se, às vezes, do pacto que tinha feito. Porém, a lembrança da terrível
cena o amedrontava e, com o tempo, o fato chegou a parecer-lhe irreal.
Muitas vezes recebia elogios
dos que o tinham por homem bom e muito virtuoso. Mas entre esses muitos, houve
um que o tocou a fundo: certo dia, um religioso a quem prestara um grande
serviço, agradeceu-lhe, dizendo que ele praticava a verdadeira caridade, e que
o seu nome, Teófilo — “aquele que ama a Deus” — lhe caía perfeitamente bem.
Essas palavras ficaram girando em sua cabeça, pois ele bem sabia que, apesar
das aparências de virtude, não amava a Deus de verdade. Perguntava-se até se
alguma vez em sua vida ele tinha amado sinceramente a Deus, pois mesmo antes de
assinar o pacto só pensava nos direitos que suas boas obras lhe davam de
alcançar o Paraíso, e não fazia outra coisa senão calcular bem precisamente sua
recompensa.
Tocado no fundo de sua alma por
essas reflexões, queria ele mudar, amar a Deus por inteiro. Entretanto algo o
impedia: o pacto com o demônio. Nada mais podia fazer, sua alma já não lhe
pertencia, pois estava vendida ao diabo. A quem poderia recorrer nesta
situação? Não lhe restava nenhuma saída, ele não conseguia sequer rezar, não
tinha forças nem para dirigir-se a Deus, uma vez que pertencia ao demônio.
Recorreu então à Santíssima Virgem, e lhe pediu ajuda, pois pelo pacto que
havia assinado, renegara a seu divino Filho. Mentira para todos, fazendo papel
de pessoa virtuosa.
Nesse momento, compadecida de tanta
miséria, Nossa Senhora dirigiu seu olhar de misericórdia àquele indigente que
se encontrava a seus pés. Apareceu-lhe e, ouvindo tudo o que ele tinha a
confessar, fez o seu papel de Mãe: obrigou o demônio a devolver-lhe o maldito
documento no mesmo instante.
Na manhã seguinte, com grande
contrição e dor, Teófilo procurou o bispo e confessou o seu crime,
mostrando-lhe o maldito contrato. Quis dar a conhecer a todo o povo o que havia
se passado com ele, pedindo ao bispo que lesse o documento na catedral. Quando
a estarrecedora leitura terminou, o pergaminho se desfez em pó à vista de
todos. Finalmente Teófilo estava livre para amar, livre para servir, livre para
reparar, e assim se santificar para a maior glória de Deus.
A história do clérigo Teófilo é
narrada no livro “Les Miracles de NotreDame” de Gautier de Coincy. Muito
popular no século XII, ela foi imortalizada no pórtico norte da Catedral de
Notre-Dame, em Paris.
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