Você morreu por mim...
Em meio ao ruído, à fuligem e
ao intenso movimento da Quinta Avenida, em Nova York, conversavam diversos
rapazes, alguns sentados no chão, outros nos degraus de um dos famosos pontos
dessa enorme cidade: a Catedral de São Patrício. Pouco educados, roupas mal
cuidadas e atitude frívola, eles eram simplesmente um grupo a mais de jovens
que, nos tristes anos da década de 1930, passavam a melhor parte da vida a
vagabundear pelas ruas das grandes metrópoles.
Naquela tarde de verão, eles
pareciam estar de ânimo mais exaltado que de costume. Um deles — alto,
sardento, ruivo e com ares de valentão — era o centro da agitada conversa,
melhor dizendo, algazarra. Com muitos gestos, jactava-se de suas brigas e
proezas. Na verdade, ele tinha algumas qualidades importantes para quem decidiu
passar a maior parte da vida na rua: era ágil, atrevido e desafiante.
Inesperadamente, um de seus
companheiros, talvez já farto de tantas fanfarronadas, lançou-lhe um desafio:
— Olha, brigar contra dois ou
três, atravessar à noite o rio a nado... muita gente faz. Se você é mesmo
corajoso como diz, entre agora nesta igreja “grandona”, vá ao confessionário e
faça uma confissão em regra! Vá... Vá, e venha nos contar depois como o padre
ouviu seus pecados e que resposta lhe deu...
Essa proposta foi acolhida com
uma estrondosa gargalhada. Fazer uma falsa confissão e depois divertir-se à
custa do ministro de Deus, nunca ninguém tinha pensado numa tão boa ideia!
Todos os olhos estavam fixos no fanfarrão, observando como reagiria.
Este decidiu-se logo. Com ares
de bravura, caminhou com passos largos em direção ao imponente portal de bronze
da igreja, enquanto seus comparsas o estimulavam com risos, palmas e assobios.
* * *
Não obstante, uma vez
ultrapassada a maciça porta, viu que de nada lhe adiantava continuar simulando
valentia, pois a catedral estava vazia. Os poucos ruídos da cidade que ali
penetravam, amainavam-se nas grossas paredes, pareciam transformados e até
mesmo em algo enobrecidos. A luz do sol, filtrando através dos vitrais,
resplandecia em tons de rubi, safira e esmeralda. Em meio à penumbra, grandes
colunas erguiam-se majestosamente do piso de pedra e perdiam-se num céu de
ogivas.
Sem perceber, o “herói” da rua
ia-se deixando impressionar por esse ambiente de sacralidade totalmente
desconhecido para ele, mas logo lembrou-se do objetivo com o qual ali entrara,
e reagiu: “Ora bolas! Eu nunca fui de prestar atenção nessas coisas! Vamos
terminar com isso!”
Afundou as mãos nos bolsos e
caminhou apressado até o confessionário. Percebendo através da grade o vulto de
um padre, ajoelhou-se de modo grosseiro e ruidoso, e sem cerimônia lançou uma
verdadeira torrente de abominações. Ele não deixou nenhum detalhe oculto; pelo
contrário, ressaltou os aspectos que, na sua opinião, deveriam causar maior
choque e repulsa. Descreveu tudo num tom de deboche que por certo teria causado
surpresa até mesmo a seus camaradas. Após alguns minutos dessa violência
verbal, na qual não faltaram injúrias e insultos ao sacerdote, encerrou a
“confissão” tão abruptamente como havia começado.
No entanto, recebeu como única
resposta um grave silêncio. Meio perplexo, estava já a ponto de levantarse e
sair, quando foi detido pela voz serena e segura do ministro de Deus, o qual
tudo ouvira impassível:
— Bem, meu filho, já que você
teve a coragem de “confessar” seus pecados, vejamos se é capaz também de
cumprir a penitência que vou lhe impor. Na nave lateral da igreja você
encontrará um grande crucifixo; pondo-se diante dele, diga em voz alta a
seguinte frase, apenas dez vezes: “Você
morreu por mim e eu não me importo com isso!”
Por essa o meliante não
esperava! Imaginava que o padre ficaria intimidado ou, melhor ainda, furioso.
Seu plano era representar a comédia da confissão e retirar-se logo em seguida,
para contar à gangue sua espetacular “proeza”, mas pensou um pouco e decidiu
prolongar a farsa: “Vou cumprir a penitência, pois isso vai tornar ainda mais
divertida a brincadeira!”
* * *
Saindo do confessionário, a
igreja parecia-lhe ainda mais magnífica que antes... Dirigiu-se para a nave
lateral, mas sentiu-se perturbado ao ouvir os sons de seus próprios passos,
pois naquele ambiente sacral até as menores coisas eram carregadas de gravidade
e significado.
Foi fácil achar o crucifixo.
Olhou em volta atentamente e percebeu com alívio que, além dele, só havia ali a
silenciosa imagem do Crucificado. Com as mãos enterradas nos bolsos, parou bem
em frente e disse em alta voz:
“Você morreu por mim e eu não
me importo com isso!”
Sua voz reboou pelos arcos da
catedral. Ele não se lembrava de jamais ter estado nalgum lugar tão silencioso
como aquela igreja. Inquieto, segurou durante alguns instantes a própria
respiração, para ouvir melhor o que acontecia...
Depois de uma pausa, com os
olhos fixos no crucifixo, repetiu a frase. Mas já não ousou falar alto, seu tom
era quase sussurrado:
“Você morreu por mim e eu não
me importo com isso!”
A imagem do crucifixo parecia
absorvê-lo... Como explicar isso? Não era senão uma escultura pendurada em um
pedaço de madeira. O que havia naquilo capaz de atrair tanto a atenção de
alguém? Oh! era a expressividade de toda a figura, especialmente da fisionomia.
Como alguém tão cheio de ferimentos poderia estar tão calmo? Era uma calma
cheia de paz, e sem ressentimentos, a despeito das provas evidentes de ter sido
vítima dos mais violentos maus-tratos.
O rapaz parou, hesitante, e
esfregou os olhos. “Droga, estou ficando impressionado...” Após uma pausa maior
que a anterior, repetiu a terrível frase:
“Você
morreu por mim e... eu... eu... não me importo com isso!”
Dessa vez, porém, disse olhando
para o chão. “Como é isso? Então não tenho coragem de fitar uma estátua?”
Levantou a cabeça, e os olhos do Cristo pareciam estar cravados nos seus.
Esforçou-se, mas não conseguiu escapar desse olhar. Começou a sentir um suor na
testa. Tentou mais uma vez:
“Você
morreu por mim e... eu... eu... não...”
Não terminou a frase. Sua voz
ressoava em seus próprios ouvidos como um carrilhão. Parecia-lhe que já nada
mais havia em torno de si. Somente aquele olhar, fincado no seu. As palavras
latejavam em sua cabeça: “Morreu por
mim... Morreu por mim... Morreu por mim...”
* * *
Quando se deu conta, estava
ajoelhado, ou melhor, sentado sobre as próprias pernas, e tinha o rosto coberto
de lágrimas. Quanto tempo teria ficado ali? Com dificuldade, levantou-se, e
parecia mudado. Em algum lugar de seu coração, acendera-se uma luz. Agora ele
via claramente que existe um Deus, e este Deus é bom. Não, não podia mais rir
d’Ele, não podia mais ofendê-Lo. Não podia mais pecar!
Saiu correndo, de volta ao
confessionário. Lá continuava pacientemente o mesmo sacerdote, ao qual fez uma
autêntica e sincera confissão. Algumas semanas depois, os franciscanos recebiam
mais um noviço.
Milagres como esse, só os faz
Aquele manso e silencioso mártir pendente do madeiro. Aquele cujos divinos
olhos possuem mais eloquência do que todas as palavras que já foram ou serão
ditas...
Ir Elizabeth MacDonald - Revista Arautos do Evangelho set 2006
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