O índio centenário

O sol nascente dispersava aos poucos a bruma que, durante a noite, havia coberto a densa mata sul-americana. Sentado tranquilamente, o velho índio tupi tomou um gole de chá de erva-mate, olhou para todos em torno e, sorrindo, disse:
— Este menino me pergunta se conheci o Pe. Anchieta. Ora, pois! Olhe, guri, “conheci” é dizer pouco! Eu fui guia desse santo durante mais de seis anos!
Os jovens brancos, índios e mestiços que dentro da grande cabana tomavam seu café da manhã fizeram um círculo, sentados no chão, como era costume naquela distante época da colonização. Os adultos, a uma certa distância, meneavam a cabeça afirmativamente. Ninguém conhecia as histórias dos tempos antigos melhor que o velho Juriti. Já naquele distante século XVI, o Pe. Anchieta era venerado como grande santo e missionário.
— Pois conte alguma coisa dele, “vô” Juriti! — disse um dos pequenos, com os olhos enlevados.
O velho índio ajeitou melhor o poncho e fixou o olhar num ponto distante, como a vislumbrar o passado. Temperou um pouco a garganta, e começou...
                                                  * * *
Oh! já faz mais de quarenta anos....
Logo após os ferozes tamoios canibais concordarem com a paz, o Pe. Anchieta chamou seu fiel guia Juriti e lhe deu ordem de preparar-se para uma longa viagem. Não mais havia o perigo da guerra, assim ele planejava visitar as distantes tribos já evangelizadas, que ficaram isoladas no período das hostilidades.
De fato, três dias depois eles partiram, acompanhados de alguns batedores e carregadores. Foram várias semanas de andanças pela terrível mata tropical, e nem vou contar perigos corriqueiros, como onças e jibóias. As tribos recebiam com alegria o santo abaré, e foi um sem-fim de batismos.
Ora, certo dia, o seu guia resolveu abrir uma trilha nova, fora das veredas habituais da região. Caminharam horas, e a mata tornava-se cada vez mais fechada. Quando menos esperavam, abriu-se diante deles uma ampla clareira na qual nada havia, exceto um enorme tronco caído bem no meio.
Para surpresa de todos, sentado nele, imóvel, estava o índio mais velho que alguém possa ter visto. Seu cabelo longo e liso, branco como a espuma do mar, escorria tal qual uma mansa cascata sobre os ombros e as costas. Seus olhos negros e pequeninos, em meio à face enrugada, vigiavam atentamente os recém-chegados.
Os supersticiosos carregadores índios se amedrontaram, julgando tratar-se de um espírito da floresta. Ele, porém, pareceu alegrar-se ao ver o sacerdote cristão e, trôpego, caminhou lentamente até este. Com voz fraca e humilde, curvou-se e lhe disse:
— Ensina-me a verdade!
De onde havia surgido esse índio tão idoso? Que verdade queria ele conhecer? A história, nós a ouvimos de seus próprios lábios.
Muitas e muitas chuvas atrás, quando ainda jovenzinho, ele certa vez contemplava com outros índios uma bela noite de luar. Veio-lhe à mente uma curiosidade: quem fez a lua? Perguntou a outros índios mais velhos e estes lhe contaram a lenda comum a todas as tribos. “Sim — insistiu ele — esta é mais uma história como as que se contam nas noites de festa. Mas diga-me a verdade: quem fez a lua?” Como réplica, repetiram-lhe a mesma lenda. E ele também não perguntou mais, pois percebeu que seus semelhantes não conheciam outra resposta.
Com o tempo, muitas outras questões começaram a saltar em sua mente:
E nós, tupis, de onde viemos? E quando morremos, o espírito vaga pelas florestas? E se eu for um bom índio, meu espírito vai vagar junto com os dos nossos inimigos?
Nunca encontrou alguém capaz de lhe responder. Anos depois, já homem feito, criou coragem e foi expor ao pajé da tribo todas as suas dúvidas e curiosidades. O velho feiticeiro se riu dele e o despediu sem resposta. Pior ainda, gracejando, contou o ocorrido a outras pessoas, de modo que em poucos dias o pobre se tornou objeto de riso e pilhéria de toda a tribo e recebeu o apelido de “Amigo da Lua”. Sentindo-se assim rejeitado, ele se isolava cada vez mais, e passou a morar numa cabana longe da aldeia de sua tribo. Uma noite, sozinho sentado à beira do rio, admirava mais uma vez a lua cheia, e pensava: “Pois prefiro ser amigo da lua que amigo desses brutos! Oh... se encontrasse alguém que me explicasse a verdade! Daria minha vida por isso!”
No mesmo instante, um clarão fulgurante surgiu-lhe diante dos olhos. Parecia ser um luminoso espírito da floresta, porém, atraente e benfazejo. Tinha a aparência de um jovem em cujo rosto havia uma expressão de muita paz, e com a fantástica característica de possuir duas grandes e belas asas brancas, como a dos pássaros. Com voz calma, falou ao espantado índio num perfeito e harmonioso tupi:
— A paz esteja contigo! Sei que os outros te chamam de Amigo da Lua. Na verdade, tu és bem mais do que isso. És amigo do Senhor Todo-Poderoso, aquele que criou a lua, o sol, os homens e tudo mais. Do alto do Céu, Ele tem observado a tua procura da verdade e te manda uma mensagem: caminharás três dias em direção ao poente, e então abrirás uma clareira em meio à mata virgem. Nesse local, um dia virá um homem branco vestido de negro, e ele te ensinará a verdade. Tudo o que precisas fazer é ter paciência e aguardar.
Dito isso, o espírito desapareceu. Contente, Amigo da Lua fez como lhe havia indicado a luminosa aparição. Sozinho, sentado no tronco da clareira por ele aberta, esperou. Passaram-se os dias, os meses e os anos. Ele só saía para comer e beber, logo retornando ao seu lugar de espera. O tempo consumiu seu antigo vigor, seus negros cabelos tornaram-se brancos, mas em nenhum momento ele duvidou. Por fim, sentiu que a morte já se avizinhava. Naquela manhã, recordou-se, completaria cem anos. Quando se cumpriria a promessa do espírito de asas brancas? Enquanto nisso pensava, ouviu o som de vozes que se aproximavam e, em meio à densa floresta, viu surgir um homem branco vestido de negro. Calado há décadas, o velho e confiante índio só soube exclamar:
— Ensina-me a verdade!
Comovido e impressionado, o Pe. Anchieta percebeu que o pobre índio sustentava-se em suas últimas forças. Sentou-se a seu lado e deu-lhe uma explicação resumida dos mistérios da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo e de sua santa doutrina. Atento e enternecido, o idoso indígena ouvia com lágrimas nos olhos.
Logo após essa breve sessão de catecismo, o missionário o batizou e quis celebrar uma Missa, usando o grande tronco caído como altar. Foi a Primeira Comunhão daquele ancião que vivera como eremita na floresta. No final da celebração, ele desfaleceu, e quando foram acudi-lo, perceberam que seu espírito já não estava nesta terra. Sua face sem vida esboçava um grande sorriso. O Amigo da Lua finalmente encontrara a verdade.

Revista Arautos do Evangelho n.67 jul 2007

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